segunda-feira, 16 de outubro de 2017

O SUAVE MILAGRE - Por Eça de Queirós

                Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades;  mas  a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre oliveiras e vinhedos, no país de Issachar. 
          Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi,   na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasênios, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Judeia, e se diante dele refulgia espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sobre o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples; logo, por toda a campina que verdejava até Ascalom, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de anêmonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade; e nos barcos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão simples certeza, os ditames antigos. 
               Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas; e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras d'Assur, matara as rezes mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se esticaram na latada airosa, só deixará, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed agachado à sombra da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel. 
         Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os demônios, emendava todas as desventuras - Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que seria um desses feiticeiros, tão acostumados na Palestina, como Apolônios, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o sutil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egito; e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como  toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novos, com magias mais viçosas de certo, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem,   procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiro ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país d"Asschar. 
                 Os servos apertaram os cinturões de couro, e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre a ponte , vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o lago de Tiberíades resplandeceu diante deles,  transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de porfírio, e de alvos terraços por entre os pomares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas. 
                 Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio até adiante do véu, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essênios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia, que como os Essênios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essênio murmurou que o Rabi atravessara o Oasis de Engaddi, depois se adiantara para além... - Mas onde "além?" - Movendo um ramo de flores rouxas que colhera, o Essênio mostrou as terras de além Jordão, a planície de Moab. Os servos vadiaram o rio, e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egito mirra, especiarias e bálsamos de Gilead; e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova um Rabi maravilhoso, maior que Davi ou Isaías, arrancara sete demônios do peito duma tecedeira, e que à sua voz, um homem degolado pela salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed descorçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da lei. Encontrara ele por acaso esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada, e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso: 
               - Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistesque existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores... 
            E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados, o furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando; "Raca! Raca!" e todos os anathemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás das serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia. 
               Por esse tempo, um centurião romano, Públius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e o mar. Públius, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra Parthas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Áttica, e gozava, com favor supremo dos deuses, a amizade de Flaccus, legado imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal sutil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sidon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo palidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara da Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Séptimus, seguia um momento seguia um momento a ave, torneando até bater morta nas rochas; depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar. 
               Então Séptimus, ouvindo contar, a mercadores de Chorazin, deste rabi admirável, tão potente sobre os espíritos , que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decurias de soldados para que o procurassem pela Galileia, e, por todas as cidade de Decapola, até à costa e até Ascalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira, e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lages de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao lago corta toda a tetrarchia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas; e as mulheres assustadas, para o amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a baixa Galileia e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os judeus sonegassem o seu feiticeiro para que romanos não aproveitassem do "superior feitiço",  derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens; e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam sacrilegamente com os punhos das espadas dos Thebahs, os Santos armários de cedro que continham "Livros Sagrados". Nas cercanias de Hebron arrastaram os solitários pelas barbas para fora das grutas, para lhes arranjar o nome do deserto ou do palmarem que se ocultava o Rabi; e dois mercadores fenícios que vinham de Joppé com uma carga de malobatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dráchmas a cada decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Iduméa que levam as rezes brancas para o Templo, fugiram espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as más sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Ascalon; não encontraram Jesus; e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes. 
               Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale avistaram sobre um outeiro, um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados brandaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
              - Oh romanos! pois acreditais que na galileia ou Judeia aparecem profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuravam palavras ocas, para arrebatar a esportula dos simples... Sem a permissão dos imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas! 
                Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Septimus, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro ; e todavia, a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas. 
                 Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da área pintada não restava grão ou côdea. Nos estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro , secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal.  E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cosidas sem sal, nutriram aquelas criaturas de Deus na terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento! 
               Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas e a Enganim; Septimus, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Septimus. E todos voltavam como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus. 
                 A tarde caia. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pedia à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada: 
                - OH filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por áreas e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te deixe? jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descera através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota? 
                  A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: 
                 - Ó mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! 
                E a mãe, em soluços:
            - Ó meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e nem me apontaria a morada do doce Rabi. Ó filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes encontram. O céu trouxe, o céu levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. 
              Dentre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: 
                 - Mãe, eu queria ver Jesus... 
                 - E logo, abrindo de vagar a porta e sorrindo, Jesus disse`à criança: 
                 - Aqui estou. 

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