sexta-feira, 13 de outubro de 2017

A PERFEIÇÃO - Por Eça de Queirós

                  Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais sutil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés maciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egito. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os Deuses marinhos. 
               A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas doirando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Num sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sobre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, tão repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embevecido de calor afável, eram duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas, voando dos ciprestes aos plátanos, e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o sutil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração. 
              Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambalhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros fatais de Troia, abandonando entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telêmaco enfaixado no colo da ama,andara sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! ditosos os Reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Troia! Felizes os seus companheiros tragados pela onda amarga! Feliz ele se se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o   corpo morto de Aquiles! Mas não: vivera! - E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as Ninfas, servas da Deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de languidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada a sedas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente dum arroio diamantino, os açafates e as travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes cintilando como tramas de prata. A intendente venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E ele, sentado num escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto, sobre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, com um sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrosia, bebia em goles delgados o néctar transparente e rubro.    Depois, tomando aquele bastão de príncipe-de-povos com que Calipso o presenteara, repercorri sem curiosidade os sábios caminhos da ilha, tão lisos e tratados que nunca as suas sandálias reluzentes  se maculavam de pó, tão penetrados pela imortalidade da Deusa que jamais neles encontrara folha seca, nem flor menos fresca pendendo na haste. Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele mar que também banhava Itaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a Deusa que o desejava!...   
              E durante esses imensos anos, que destino envolvera a sua Itaca, a áspera ilha de sombrias matas? Viviam eles ainda, os seres amados? Sobre a forte colina, dominando a enseada de Reithros e os pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos pintados de vermelho roxo? Ao cabo de tão lentos e vazios anos, sem novas, apagada toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua Penélope e túnica passageira da viuvez, e passara para os braços fortes doutro esposo forte, que agora manejava suas lanças e vindimava as suas vinhas? E o doce filho Telêmaco? Reinaria ele em Itaca, sentado, com o branco cetro, sobre sobre o mármore alto de Ágora? Ocioso e rondando pelos páteos, baixaria os olhos sob o império duro dum padrasto?  Erraria por cidades alheias mendigando um salário?... Ah! se a sua existência, assim para sempre arrancada da mulher, do filho, tão doce ao seu coração, andasse ao menos empregada em façanhas ilustres! Dez anos antes, também desconhecia a sorte de Itaca, e dos seres preciosos que lá deixara em solidão e fragilidade; mas uma empresa heroica o agitava; e cada manhã a sua fama crescia, como uma árvore num promontório, que enche o céu e todos os homens contemplam. Então era a planície de Troia - e as brancas tendas dos gregos ao longo do mar! Sem cessar, meditava astúcias de guerra; com soberba facúndia discursava na Assembléia dos Reis; rijamente jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de lança alta corria, entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam, em roldão ressoante, das portas Skaias! ...   Oh! e quando ele, Príncipe-de-Povos, encolhido sob farrapos de mendigo com os braços maculados de chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa Troia, pelo lado da Faia, para de noite com incomparável ardil e bravura, roubar o Paládio tutelar da cidade! Enquanto, dentro do ventre do Cavalo-de-Pau, na escuridão, no aperto de todos aqueles guerreiros hirtos e cobertos de ferro, calmava a impaciência  dos que sufocavam, e tapava com a mão a boca de Antiklos  bravejando furioso, ao escutar fora na planície os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava: "Cala, cala! que a noite desce e Troia é nossa..." E depois as prodigiosas viagens! O pavoroso Pifemo, ludibriado com uma astúcia que para sempre maravilhará as gerações! As manobras sublimes entre Scila e Caribdes! As Sereias, vogando e cantando em torno do mastro, onde ele esteve amarrado, as rechaçava com mudo dardejar dos olhos mais agudos que dados!   A descida aos infernos, jamais concedida a um mortal!... E agora homem de tão rutilantes feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor duma Deusa! Como poderia ele fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, nem companheiros para mover os remos longos? Os Deuses ditosos certamente esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente voltara as rezes devidas, mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra agreste!... E ao herói,que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma ilha mais languida que uma costa de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.
                 Assim gemia o magnífico Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que de repente um sulco de desusado brilho, mais rutilantemente branco que o duma estrela caindo, riscou a rutilância do céu, desde as alturas até à cheirosa mata de tuias e cedros, que assombrava um golfo sereno, a oriente ilha. Com alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tão refulgente, na refulgência do dia, só um Deus o podia traçar através do largo Uranos. Um deus, pois, descerá à ilha?
               Um deus descerá, um grande Deus... Era o mensageiro dos Deuses, o leve, eloquente Mercúrio. Calçado com aquelas sandálias que tem duas asas brancas, os cabelos cor de vinho cobertos pelo casco onde batem também duas claras asas, erguendo na mão o Caduceu, ele fendera o Éter, roçara a lisura do mar sossegado, pisara a areia da ilha, onde as suas pegadas ficavam rebrilhando como palmilhas de ouro novo. Apesar de percorrer toda a terra, com os recados inumeráveis dos Deuses, o luminoso mensageiro não conhecia aquela ilha de Ogígia - e admirou, sorrindo, a beleza dos prados de violetas tão doces para o correr e brincar de Ninfas, e o harmonioso faiscar dos regatos por entre os altos e languidos lírios. Uma vinha, sobre esteios de jaspe, carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de rochas polidas, donde pendiam jasmineiros e madressilvas, envolta no sussurrar das abelhas. E logo avistou Calipso, a deusa ditosa, sentada num trono, fiando em roca de ouro, com fuso de ouro, a lã formosa de púrpura marinha. Um aro de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente louros. Sob a túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava, como a neve quando a aurora a tinge de rosas nas colinas eternas povoadas de Deuses. E, enquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como trêmulo fio de cristal vibrando da terra ao céu. Mercúrio pensou: "Linda ilha e linda Ninfa!" 
               Dum lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado que perfumava toda a ilha. Em roda, sentadas em esteiras, sobre o chão de ágata, as Ninfas, servas da Deusa, dobavam as lãs, bordavam na seda as flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram, com o seio a arfar, sentindo a presença do Deus. E sem deter o fuso faiscante, Calipso reconhecera logo o Mensageiro - pois que todos os imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos e os rostos soberanos,mesmo quando habitam retiros remotos que o Éter e o Mar separam. 
              Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina,  exalando o perfume do Olimpo. Então a Deusa ergueu para ele, com composta serenidade, o esplendor largo dos seus olhos verdes:
             - Oh Mercúrio! porque desceste à minha ilha humilde, tu, venerável e querido, que eu nunca vi pisar a terra? Dize o que de mim esperas. Já o meu aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber dentro do meu poder e do Fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce irmã, à mesa da hospitalidade. 
               Tirou da cintura roca, arredou os anéis soltos do cabelo radiante  - e com as suas nacaradas mãos colocou sobre a mesa, que as Ninfas acercaram do lume aromático, o prato transbordando de Ambrosia, e as infusas de cristal onde cintilava o néctar. 
                Mercúrio murmurou: - "Doce é tua hospitalidade, ó Deusa!" Pendurou o Caduceu do fresco ramo dum plátano, estendeu os dedos reluzentes para a travessa de ouro, risonhamente louvou a excelência daquele néctar da ilha. E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso  do plátano que cobriu de claridade, começou, com palavras perfeitas e aladas: 
                 - Perguntaste porque descia um Deus à tua morada, oh Deusa! E certamente nenhum imortal percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogígia, esta deserta imensidade do mar salgado em que se não encontram cidades de homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário donde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o murmúrio gostoso das preces... Mas foi nosso pai Júpiter, o tempestuoso, que me mandou neste recado. Tu recolheste, e reténs pela força incomensurável da tua doçura, o mais sutil e desgraçado de todos os príncipes que combateram durante dez anos a alta Troia, e depois embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da Pátria. Muitos desses conseguiram reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de despojos, e de histórias excelentes para contar. Ventos inimigos, porém, e um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas suas espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da ordem, te ordena, ó Deusa, que soltes o magnífico Ulisses dos teus braços claros, e o restitua, com os presentes docemente devidos, à sua Itaca amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada dos pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos seus frescos vinhos!
                A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sobre a sua face luminosa desceu a sombra das densas pestanas cor de jacinto. Depois, com um harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:     
              - Ah! Deuses grandes, Deuses ditosos! como sois asperamente ciumentos das Deusas, que, sem se esconderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloquentes e fortes!... Este, que me invejais, rolou às areias da minha ilha, nu, pisado, faminto, preso a uma quilha partida, perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu p recolhi, o lavei, o nutri, o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das tormentas, da dor e da velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de oito anos em que minha doce vida se enroscou em torno desta afeição como a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera para a minha imortalidade! Realmente sois cruéis, ó Deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos Semideuses dormindo com as mulheres mortais! E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não possuo naves, nem remadores, nem piloto sabedor que o guie através das ilhas? Mas quem pode resistir a Júpiter, que ajunta as nuvens?  Seja! e que Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...
               Imediatamente, o mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com pregos de ouro, retornou o seu Caduceu, e bebendo uma derradeira taça do néctar excelente da ilha, louvou a obediência da Deusa:
               - Bem farás, ó Calipso! Assim evitas a cólera do pai trovejante. Quem lhe resistirá? A sua Onisciência  dirige a sua Onipotência. E ele sustenta, como cetro, uma árvore que tem por flor a ordem... As suas decisões, clementes ou cruéis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se torna terrífico  aos peitos rebeldes. Pela tua pronta submissão será filha estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de sossego, sem intrigas e sem surpresas... 
                 Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e seu corpo, com sublime graça, se balançava por sobre as relvas e flores que alcatifavam a entrada da gruta. 
              - De resto - acrescentou - a tua ilha, ó Deusa, fica no caminho das naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido os imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro, de noite, nas rocas altas! 
              E rindo, o Mensageiro Divino serenamente se elevou, riscando no Éter um sulco de elegante fulgor que as Ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com frescos lábios entre-abertos e o seio levantado, no desejo daquele imortal formoso. 
              Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira duma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnífico Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com anegra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
                - Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os Deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra pátria...
                 Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa: 
                - Ó deusa, tu dizes!...
                 Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina: 
               - Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam... Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques... Depois eu proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
               O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na deusa um duro olhar que a desconfiança enegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a ansiedade do seu coração: 
                 - Ó Deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis, onde mal se mantém fundas naves! Não, Deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra, onde os Deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às Sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras dentre Scilia e Charibdes, e venci Polifeno com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi de certo, ó Deusa, para que agora, na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca plumagem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada com ardis de mel! Não, Deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos Deuses, que não prepararás, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável! 
                 Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente... Então a Deusa clemente riu, com um cantado refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos espessos cabelos mais negros que a pez: 
                 - Ó maravilhoso Ulisses - disse - tu és bem na verdade o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, Deusa, empreenderia, e o Fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!
                 O divino Ulisses retirou lente e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
                 - Mas jura... Ó Deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onde de leite, a saborosa confiança! 
                Ela ergueu o claro braço ao azul onde os Deuses moram: 
               - Por Gaia, e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Stígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, ó homem, príncipe dosa homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores... 

                O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas: 
                - Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, ó Deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!
                   - Sossega, ó homem sôfrego de males humanos! Os Deuses superiores em sapiência já determinam o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força... Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta. 
                 Era com efeito a hora em que homens mortais e Deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados, e as amoráveis conversas que contenham a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim,que ainda conservava o aroma do corpo de Mercúrio, e diant dele as Ninfas, servas da Deusa, colocaram os bolos, as frutas, as tenras carnes fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num trono de ouro puro, a Deusa recebeu da intendente venerável o prato de Ambrosia e a taça de néctar. Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da terra e do céu. E logo que e a oferenda abundante à fome e à sede, a ilustre Calipso, encostando a face dos dedos róseos, e considerando pensativamente o herói, soltou estas palavras aladas:
                Ó Ulisses muito sutil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Itaca, ficarias entre os meus braços, animado, banhando, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem perder a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da fecúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera, onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas e diante de estrelas puras. 
                  O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Troia, disse: 
                Ó deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu será eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem ; e ela, em poucos anos, conhecerá e melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possues as luminosas certezas. Mas, ó Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congênere! Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu como vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrosia divina! Em oito anos, ó Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu , a forçado meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens; e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu é imortal; e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale numa correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais - "Foi culpa tua, mulher!" - erguendo, em frente à lareira, uma alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários! 
                  Assim o cacundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a Deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu. 
               No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e se espalhava por sobre o mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da ilha se cobriram de sombra...
                 Cedo, apenas Eos entreabria as portas do largo Uranos, a divina Calipso, que revestira uma túnica mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos cabelos um véu transparente e azul como Éter ligeiro, saiu da gruta, trazendo ao magnífico Ulisses, já sentado à porta, sob a ramada,diante duma taça de vinho claro. o machado poderoso de seu pai ilustre, todo de bronze, com dois fios, e um rijo cabo de oliveira cortado nas faldas de Olimpo. 
             Limpando rapidamente a dura barba com as costas da mão, o herói arrebatou o machado venerável: 
                - Ó Deusa, ha quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu, devastador de cidadelas e construtor de naves! 
                A Deusa Sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas: 
            - Ó Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu encomendaria para ti, a Vulcano e às suas forjas do Étna, armas maravilhosas...
                -Que vale armas sem combatentes, ou homens que as admirem? De resto, ó Deusa, já muito batalhei, e a minha glória entre gerações está soberbamente segura. Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meus gados, concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, ó Deusa, e mostra as árvores fortes que me convém cortar!
                Em silêncio ela caminhou por atalho, florido de altas e radiosas açucenas, que conduzia à ponta da ilha mais cerrada de matas, do lado do Oriente; e atras seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das rochas onde bebiam, para esvoaçarem em torno da deusa num tumulto amoroso. Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia das flores abertas, como de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam num viço mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da Deusa, impaciente com a serenidade divina do seu andar harmonioso, meditava a jangada, almejava pelo bosque. 
                 Denso escuro o avistou enfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas técas, de pinheiros que ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem p´lida flor de cardo marinho, desmanchava a doçura perfeita. E o mar refulgia com um brilho safírico, na quietação da manhã branca e corada. Caminhando dos carvalhos à técas, a Deusa marcou ao tento Ulisses os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas traidoras. Depois, acariciando o ombro do herói, como outra árvore robusta também votada às águas cruéis, recolheu à sua gruta, onde tomou a roca de ouro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou... 
             Com a alvoraçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra o vasto carvalho que gemeu. E em breve toda a ilha retumbava, no fragor da obra sobre-humana. As gaivotas, no silêncio eterno daquelas ribas, bateram o voo em largos bandos, espalhadas e gritando. As fluidas divindades dos ribeiros indolentes, estremecendo num fulgente arrepio, fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse curto dia o valente Ulisses abateu vinte árvores, robles, pinheiros, técas e choupos - e todas decotou, esquadrou, e alinhou sobre a areia. O seu pescoço e arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu pesadamente à gruta, para saciar a rude fome, e beber a cerveja gelada. E nunca ele parecia tão belo à Deusa imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os caminhos se cobriram de sombra, encontrou incansada e pronta a força daqueles braços que tinham abatido vinte troncos! 
               Assim, durante três dias trabalhou o herói. E como arrebatada nessa atividade magnífica que abalava a ilha, a Deusa ajudava Ulisses conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos delicadas as cordas e os pregos de bronze. As Ninfas, por seu mandado, abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que empurrariam com amor os ventos amáveis. E a intendente venerável já enchia os odres de vinhos robustos, e preparava com generosidade os víveres numerosos para a travessia incerta. No entanto, a jangada crescia, com os troncos bem ligados, e um banco erguido ao meio, donde se empinava o mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo e lizo que uma vara de marfim. Cada tarde a deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque, contemplava o calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com rija alegria, um canto de remador. E, ligeiras, na ponta dos pés luzidios, por entre o arvoredo, as Ninfas escapando à tarefa, acudiam a espreitar, com desejosos olhos fulgurantes, aquela força solitária, que soberbamente, no areal solitário, ia erguendo uma nave... 
            Enfim no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da ilha imortal e as suas pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à verga alta a vela cortada pelas Ninfas. Sobre pesados rolos, manobrando a alavanca, rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esforço sublime, com músculos tão retesos e veias tão inchadas, que ele mesmo parecia feito de troncos e cordas. Uma ponta da jangada arfou, levantada em cadência pela harmoniosa. E o herói,erguendo os braços lustrosos de suor, louvou os Deuses imortais. 
              Então, como a obra findara e a tarde rebrilhava, propicia à partida, a generosa Calipso trouxe Ulisses, através das violetas e das anêmonas, à fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nacar, e o perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa de lã bordada, e lançou sobre os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sobre a mesa, para ele saciar a fome rude, as comidas mais sãs e mais finas da terra. O herói aceitava os amorosos cuidados, com paciente magnanimidade. A Deusa, de gestos seremos, sorria taciturnamente. 
              Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gosto os calos que lhe deixara o machado; e pela borda do mar o conduziu à praia, onde a vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos descansaram sobre uma rocha musgosa. Nunca a ilha resplandecera com uma beleza tão serena, entre um mar tão azul, sob um céu tão macio. Nem a água fresca do Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho dourado que produzem as colinas de Chio, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de aromas, composto pelos Deuses para o respirar duma Deusa. A frescura imorredoira das árvores entrava no coração, quase pedia a carícia dos dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o das aves nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como as harmonias sagradas de um templo distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do sol. Tantos eram os frutos nos vergéis, e as espigas nas messes, que a ilha parecia ceder, afundada no mar, sob o peso da sua abundância.
                 Então a Deusa, ao lado do herói, levemente suspirou, e murmurou num sorriso alado:
              -Oh magnífico Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a mortal Penélope, e o teu doce Telêmaco, que deixaste no colo da ama quando a Europa correu contra a Ásia, e agora já sustenta na mão uma lança temida. Sempre dum amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor, mesmo triste. Mas dize! Se em Itaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, ó homem prudente, esta doçura, esta abundância e beleza imortal? 
               O herói, ao lado da Deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembléia dos Reis, diante dos muros de Troia, quando plantava nas almas a verdade persuasiva: 
              - Ó Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem meu filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, ó Deusa, muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, ó Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, ó Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostraste estes prados perpétuos: - e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu voo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da grutas para não escutar o murmúrio sempre lânguido desses arroios sempre transparentes! Considera, ó Deusa, que na tua ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidores. Ó Deusa, ha oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho,o esforço, a luta e o sofrimento. Ó Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejado sob o fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre sua muleta, mendigando à porta das vilas. Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura. Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe. Ó Deusa imortal, eu morro com saudades da morte! 
               Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a Deusa escutara, com um sorriso serenamente divino, o furioso queixume do herói cativo... No entanto, já pelas colinas as Ninfas, servas da Deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amarando-os com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de couro, que a intendente venerável mandava para abastecer a jangada. Silenciosamente o heróis lançou uma tábua desde a areia até ao bordo de altos toros. E enquanto sobre ela as Ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as Ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da Deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do herói sobre o dorso das águas...Então uma cólera lampejou nos olhos de Ulisses,. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços: 
               - Ó Deusa, pensas tu na verdade que nada falta para que eu largue a vela e navegue? Ode estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hospede magnífico da tua ilha, da tua gruta, do teu leito... Sempre os Deuses imortais determinaram que aos hospedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão eles, ó Deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da terra e lei do céu? 
                   A Deusa sorriu com sublime paciência. E com palavras aladas, que fugiam na aragem: 
               - Ó Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens! E também o mais desconfiado, pois que supões que uma Deusa negaria os presentes devidos àquele que amou... Sossega, ó sutil herói... Os ricos presentes não tardam, largos e rebrilhantes. 
               E certamente, pela colina suave, outras Ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnífico Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores... E, enquanto elas passavam sobre a tábua rangente, o herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrados, os escudos cravejados de pedras...
                 Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira Ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a Ninfa, arrebatou o vaso, e sopesou, o mirou, e gritou, com soberbo riso estridente: 
                   - Na verdade, este ouro é bom! 
                 Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Masentão recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia, e pousou um beijo sereno na fronte da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto: 
                 Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos... 
                Ulisses recuou, com um brado magnífico: 
                - Ó Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição! 
                 E, através da vaga, fugiu, trepou sofregadamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas! 

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