terça-feira, 31 de outubro de 2017

A MENTIRA - Por Eça de Queirós

            Não era o correio. Era apenas um bilhete que Batista trazia numa salva; e vinha tão perturbado que anunciou:
               - Um sujeito, ali fora, na ante-câmara, numa carruagem, à espera...
          Carlos olhou o bilhete, empalideceu terrivelmente. E ficou a revirá-lo, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silêncio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.
                - Caramba! murmurou Ega, assombrado.
                Era Castro Gomes!
                Bruscamente Carlos erguera-se, decidido. 
                - Manda entrar... Para o salão grande! 
          Batista apontou para o jaquetão de flanela com o qual Carlos tinha almoçado,e perguntou baixo se S. Exa. queria uma sobrecasaca.
                - Traze.
                 Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante ansiosamente. 
                - Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega. 
                Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete; o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes; por baixo tinha escrito a lápis "Hotel Bragança..." Batista voltava com a sobrecasaca; Carlos, abotoando-a de vagar, saiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficara de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo. 
              No salão nobre, forrado de brocados cor de musgo de outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado à borda do sofá, a esplêndida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bela e forte no seu vestido de veludo escarlate de caçadora inglesa.  Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéu branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquele soberbo Constable...  Com um gesto rígido, Carlos, muito pálido, indicou-lhe o sofá. Saudando risonho, Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa, trazia um botão de rosa; os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabelos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de secura, de fadiga. 
               - Eu possuo também em Paris um Constable muito chic, disse ele, sem embaraço, num tom arrastado, cheio de rir, que o sotaque brasileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paisagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia dá muito tom a um galeria. É necessário tê-lo.
                Carlos, defronte, numa cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a imobilidade de um mármore. É, perante aquele modo afável, uma ideia ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimível chama de cólera. Carlos Gomes de certo não sabia nada! Chegara, desembarcara, correra aos Olivais, dormia nos Olivais! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços - a ela! E agora ali estava, tranquilo, de flor ao peito, falando de Constable! 
                 O único desejo de Carlos, nesse instante, era que aquele homem o insultasse. 
                 Noentanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
                 - O motivo porém que me trás tão urgente, que cheguei esta manhã, às dez horas, do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui... E esta mesma noite, se puder, parto para Madri. 
                 Fez-se um  alívio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aqueles secos lábios não a tinham tocado! E saiu enfim da sua rigidez de mármore, teve um movimento atento, aproximando de leve a cadeira. 
Castro Gomes, no entanto, tendo pousado o chapéu, tirara do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monograma de ouro; e vagaroso, procurava entre os papéis uma carta... Depois, com ela na mão, muito tranquilamente: 
                - Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anônimo... Mas não creia V. Exa. que foi ele que me levou a atravessar à pressa o Atlântico. Seria o maior dos ridículos... E desejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. Quer V. Exa. lê-lo, ou quer que eu leia? 
                 Carlos murmurou com um esforço: 
                 - Leia V. Exa. 
                 Castro Gomes desdobrou o papel e revirou-o um instante entre os dedos. 
           - Como V. Exa vê, é carta anônima em todo o seu horror; papel de mercearia, pautadinho de azul; caligrafia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui está com ele se exprime:
               "Um homem que teve a honra de apertar a mão de V. Exa." Eu dispensava a honra... "que teve a honra de apertar a mão de V. Exa., e de apreciar o seu cavalheirismo, julga dever preveni-lo que sua mulher e, à vista de toda Lisboa,a amante de um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive numa casa com as janelas verde, chamada o Ramalhete. Este herói que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivais, onde instalou a mulher de V. Exa. e onde a vai ver todos os dias, ficando às vezes, com escândalo da vizinhança, até de madrugada. Assim, o nome honrado de V. Exa. anda pelas lamas da capital." É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ela diz é incontestavelmente exato... O Sr. Carlos Eduardo da Maia é, pois, publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante dessa Senhora. 
                Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, numa aceitação inteira de todas as responsabilidades:
                  - Não tenho então nada a dizer a V. Exa. senão que estou às suas ordens!... 
                Um fugitiva onda de sangue avivou a palidez morena de castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente: 
                 - Perdão... O Sr. Carlos de Maia sabe tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, ler-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra. 
                  Carlos recaíra na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada daquela voz ia-se-lhe tornando intolerável. Um confuso terror do que viria desses lábios, que sorriam com uma palidez impertinente, quase fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que saísse daquela sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!... 
               O outro passou os dedos no bigode, e prosseguiu, de vagar. arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão: 
               - O meu caso é este, Sr. Carlos de Maia. Há pessoas em lisboa que não me conhecem de certo, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso.  E V. Exa. compreende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a mada de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher. 
           Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça como acolhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquer palavra entre eles desnecessária e vã. 
                   Mas Castro Gomes escolhera de leve os ombros com uma languida resignação, como quem atribui tudo à malícia dos destinos.  
                  - Sãs as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está dai a ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado de ir ao Brasil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o Hotel Central. V. Exa. compreende perfeitamente que eu não fui fazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhora vinha comigo. dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim um amante ... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condená-la muito... Achava-se por acaso revestida duma excelente posição social e dum nome puro, seria mais que humano que seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nome eram de empréstimo e ela era apenas "Fulana de tal, amiga..." De resto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou à matrona que lhe alugava a casa; nem mesmo, penso eu, a ninguém, a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas, lhe deixei usar o meu nome. Foi por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomou a governante inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobretudo, uma rapariga tão séria... Enfim, tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retire solenemente o nome que lhe emprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren. 
                Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas da dadeira tão fortemente, que quase lhe esgaçava o estofo: 
              - Mais nada,  creio eu?
               Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despedia. 
              - Mais nada, disse ele tomando o chapéu e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a V. Exa suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente ha três anos... Vinha dos braços dum qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injúria, que era uma mulher que eu pagava. 
             Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abria o reposteiro da sala, numa sacudidela brusca. E, diante desta nova rudeza que revelava só mortificação. Castro Gomes foi perfeito; saudou, sorrindo, murmurou:
               - Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pesar de ter feito o conhecimento de V. Exa por um motivo tão desagradável... Tão desagradável para mim. 
            Os seus passos desafogados e leves perderam-se na antecâmara, entre as tapeçarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada... 
                  Carlos ficara caído numa cadeira, junto da porta, com a cabeça entre as mãos. E de todas aquelas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe ressoavam em redor, adocicadas  e lentas, só lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bela, resplandecendo muito alto, e que caía de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nodoas intoleráveis... Não sofria: era simplesmente um assombro de todo o seu ser perante este fim imundo de um sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de ouro; de repente uma voz passava, cheia de rir; as duas almas rolavam, batiam num charco; e ele achava-se tendo nos braços uma mulher que não conhecia, e que se chamava Mac-Gren. 

 *           *          *

                Daí a pouco Carlos rodava pela estrada dos Olivais. Já se acendera o gaz. E inquieto, no estreito assento, acendendo novamente cigarrettes que não fumava, sofria já a perturbação daquele encontro difícil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por "minha senhora", se por "minha boa amiga", com uma superior indiferença. E ao mesmo tempo sentia por ela uma compaixão indefinida, que o amolecia. Diante destes seus modos regelados, via-a já toda pálida, a tremer, com olhos cheios de água. E estas lágrimas que apetecera, agora que estava tão perto de as ver correr, enchiam-no só de comoção e de dor. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre secamente! Poderia não lhe mandar o cheque, - afronta brutal de homem rico. Apesar de embusteira, era mulher, cheia de nervos, cheia de fantasias, e amara-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria de suportar a tortura das explicações e das lágrimas. 
                  Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, refletir um instante, mais calmamente, no silêncio das rodas. O cocheiro não ouviu; o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, à m,aneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aqueles lugares onde tantas vezes passara com o coração em festa, quando a sua paixão estava em flor, uma cólera nova voltava -menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa mentira que fora obra dela, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava, vendo-a como uma coisa material e tangível, de um peso enorme, feia e cor de ferro, esmagando-lhe o coração.
                  Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidável que estava entre eles, como um indestrutível bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Mas havia a mentira, a mentira, dita no primeiro dia em que fora à rua de S. Francisco, e que como um fermento podre estragando tudo de aí por diante, doces conversas, silêncios, passeios, sestas no calor da quinta, murmúrios de beijos morrendo entre os cortinados cor de ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquela mentira primeira que ela dissera sorrindo, com os seus tranquilos olhos límpidos... 
               Abafava. Ia descer a vidraça a que faltava a correia, quando a tipoia parou de repente, na estrada solitária... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça falava ao cocheiro. 
          Caminhando devagar sob as acácias, sentia no sombrio silêncio as pancadas desordenadas do seu coração. subiu os três degraus de pedra, que lhe pareciam já duma casa estranha. Dentro do corredor estava deserto, com a sua lâmpada mourisca alumiando as panóplias de touros... Ali ficou. Melanie, com o cheiro na mão, veio dizer-lhe que a Senhora estava na sala das tapeçarias...  
                     Carlos entrou. 
                     Lá estava ainda de capa, esperando de pé, pálida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lágrimas. E correu para ele, arrebatou-lhe as mãos, sem poder falar, soluçando, tremendo toda. 
            Na sua terrível perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estúpida: 
                    - Não sei porque chora , não sei, não há razão para chorar...
                    Ela pode enfim balbuciar: 
                   - Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia ver-te... Nunca tive coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrível... Mas escuta, não digas nada ainda, perdoa, que eu não tenho culpa! 
                 De novo os soluços a sufocaram. E caiu ao canto do sofá, num choro brusco e nervoso, que a sacudia toda, lhe fazia rolar sobre os ombros os cabelos mal atados. 
                 Carlos ficara diante deles, imóvel. O seu coração parecia parado de surpresa e de dúvida, sem força para desafogar. 
               Ela ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com grande esforço: 
                - Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!... Tu não te vais já embora, senta-te, escuta... 
                   Carlos puxou uma cadeira, lentamente. 
                  - Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!
                  Ele cedeu à suplicação humilde e enternecedora doas seus olhos arrasados de água; e sentou-se ao outro canto do sofá, afastando dela, numa desconsolação infinita. Então, muito baixo, enlouquecida pelo choro, sem o olhar e como num confessionário, Maria começou a falar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grande soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face aflita. 
                  A culpa não fora dela! não fora dela! Ele devia ter perguntado àquele homem que sabia toda a sua vida...  Fora sua mãe... Era horroroso dizê-lo, mas fora por causa dela que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandês... E tinha vivido com ele quatro anos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só ocupada da sua casa, que ele ia casar com ela! Mas morrera na guerra com os alemães, na batalha de Saint-Privat. E ela ficara com Rosa, com a mãe já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao princípio trabalhara... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhara, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! A pobre criança com fome! com fome! Ah, ele não podia perceber o que isto era!... Quase fora por caridade que as tinham repatriado para Paris... E aí conhecera Castro Gomes. Era horrível, mas que havia ela de fazer! Estava perdida... 
                   Lentamente escorregara do sofá, caíra aos pés de Carlos. E ele permanecia imóvel, mudo, com o coração rasgado por angústias diferentes; era uma compaixão trêmula por todas aquelas misérias sofridas, dor de mãe, trabalho procurado, fome, que lhe tornavam confusamente mais querida; e era o horror desse outro homem, o irlandês, que surgia agora, e que lha tornava de repente mais maculada... 
                  Ela continuava falando de Castro Gomes. Vivera três anos com ele, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em sua casa. Ele é que aforçava a andar em ceias, em noitadas... 
                E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!... 
                     - OH não, não me mandes embora! gritou ela prendendo-se a ele ansiosamente, Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não compreendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não volts o rosto, tem pena de mim... 
                    Não! ele não queria olhar. Temia aquelas lágrimas, o rosto cheio de agonia. Já tudo nele começava a oscilar, orgulhosos, despeitos, dignidade, ciúme... E então, sem saber, a seu pesar, as suas mãos apertaram as dela. Ela cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente; e ansiosa implorava do fundo da sua miséria um instante de misericórdia. 
                   - Oh, dize que me perdoas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como dantes, uma só vez! 
                   E eram agora os seus lábios que procuravam os dele. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu ser encheu Carlos de cólera, contra si e contra ela. Sacudiu-a bruscamente e gritou: 
                     - Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Para que foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste tu? 
             Largara-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cair sobre ela a sua queixa desesperada:
                  -É a tua mentira que nos separa, a tua horrível  mentira, a tua mentira somente! 
                    Ela ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma palidez de desmaio. 
                - Mas eu queria dizer-to, murmurou muito baixo, muito quebrada diante dele, deixando cair os braços. Eu queria dizer-to... Não te lembras, naquele dia em que tu vieste tarde, quando eu falei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: -"há uma coisa que te quero contar..." Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que havíamos de ir com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras? ... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, anos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: "agora, se queres, manda-me embora". Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não falasse em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal falaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além disso adiava aquela horrível confissão! Enfim, nem posso explicar, era como céu que se abria, via-me contigo numa casa nossa... Foi uma tentação! ... E depois era horrível, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te:"não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho..." Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era  tão bom ser assim estimada... Enfim foi um mal, foi um grande mal... E agora aí está, veja-me perdida, tudo acabou!
                  Atirou-se para o chão, como uma criatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto dela, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços dela lhe respondiam. 
                  - Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivais, quando sabias que tu eras tudo para mim? 
                  Ela ergueu a cabeça fatigada: 
                  - Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse de outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por aí dentro de chapéu na cabeça, a perder a afeição à pequena, a querer pagar as despesas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia: "hoje não, um dia só mais de felicidade, amanhã será..." E assim ia indo! Enfim, nem eu sei, um horror!
                Houve um silêncio. E então Carlos sentiu à porta Niche, que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadelinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhada a um canto; procurava lamber-lhe as mãos, inquieta; depois ficou plantada junto dela, como a guardá-la, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos de azeviche, Carlos que recomeçara a passear sombriamente. 
                Um ai mais longo e mais triste de Maria fê-lo parar. Esteve um momento olhando para aquela dor humilhada... 
                 - Mesmo que tu pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora, nunca mais? Ha essa mentira horrível sempre entre nós a separar-nos!  Não teria um único dia de confiança e de paz...
                - Nunca te menti senão numa coisa, e por amor de ti! disse ela gravemente, do fundo da sua prostração. 
                 - Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia creditar... Como havia de ser, se agora mesmo quase que nem acredito no motivo das tuas lágrimas? 
               Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente secos rebrilharam, revoltados e largos, no mármore da sua palidez. 
                - Que queres dizer? Que estas lágrimas tem outro motivo, estas súplicas são fingidas? Que estas lágrimas tem outro motivo, estas súplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te perder, ter outro homem, agora que estou abandonada? ...
                Ele balbuciou: 
                 - Não, não! não é isso!
                - E eu? exclamou ela, caminhando para ele, dominando-o, magnífica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é que tu amas então em mim? Dize lá! Era a mulher de outro, o nome, o requinte do adultério, as toilettes?  Ou era eu própria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti? ... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... só uma coisa é diferente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior. 
                - Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.
                Num instante Maria estava caída a seus pés, com os braços abertos para ele. 
                - Juro-te pela alma da minha filha, pela alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até à morte! 
                 Carlos tremia. Todo o seu ser pendia para ela; era um impulso irresistível. Mas outra vez a ideia da mentira passou regeladora. E afastou-se dela levando os punhos à cabeça, num desespero, revoltado contra aquela coisa pequenina e indescritível que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre eles e a sua felicidade divina.
                 Ela ficara ajoelhada, imóvel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois do silêncio estofado da sala, a sua voz ergueu-se, dolente e trêmula: 
                  - Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguém mais me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não ninguém mais no mundo... Amanhã saio daqui, deixo-te tudo... Hás de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de fazer, vou-me embora! 
                 E não pode mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de choro. 
                 Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para ali caída e abandonada, parecia já uma pobre criatura, arremessada para fora de todo o lar, sozinha a um canto, entre a inclemência do mundo... Então, respeitos  humanos, orgulho, dignidade doméstica, tudo nele foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, ofuscando todas as fragilidades, a sua beleza, a sua dor, a sua alma sublimemente amante. Um delírio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se à sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos: 
                    - Maria, queres casar comigo? 
             ela ergueu a cabeça sem compreender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para fechar dentro deles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cair sobre o peito dele, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, num deslumbramento: 
                      - Casar contigo, contigo? Oh Carlos... E viver sempre sempre contigo? ... Oh meu amor, meu amor! e tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa também... Não, não cases comigo, não é possível, não valho nada! Mas se tu queres, por que não?...  Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E hás de ser nosso amigo, meu e dela, que não temos ninguém no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...
                 Empalideceu, escorregando pesadamente entre os braços dele, desmaiada; e os seus longos cabelos desprendidos rojavam o chão, tocados pela luz de tons de ouro. .
*          *           * 
Tu dizes que me perdoas
Mas, esquecer é que não,
Perdão em que não se esquece
Será que é mesmo Perdão?
Nicéas Romeo Zanchett 

Nenhum comentário:

Postar um comentário