sábado, 19 de agosto de 2017

A CIDADE E AS SERRAS

COLETÂNEA DE OBRAS CÉLEBRES 
Eça de Queiroz 
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                Era um domingo silencioso, enevoado e macio, convidando às voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha alma) sugeri a Jacinto que subíssemos à Basílica do Sacré-Coeur, em construção nos altos de Montmartre. 
               - É uma séca, Zé Fernandes...
               - Com mil demônios! Eu nunca via a Basílica...
               - Bem, bem! Vamos à Basílica, homem fatal de Noronha e Sande! 
               E por fim logo que começamos a penetrar, para além de S. Vicentes de Paula, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canas - o meu fastioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza das coisas. 
               A vitória parou em frente à larga rua de escadarias que trepa, cortando vielazinhas campestres, até a esplanada, onde, envolta em andaimes, se ergue a Basílica imensa. Em cada patamar, barracas de arraial  devoto, forradas de paninho vermelho, transbordavam de imagens, Bentinhos, Crucifixos, Corações de Jesus bordados a retros, claros molhos rosários. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria. Dois padres desciam, tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava na doçura cinzenta da tarde. E Jacinto murmurou, com agrado: 
               - É curioso!
               Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes e andaimes, toda branca e seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E Jacinto, por um impulso bem Jacinto, caminhou gulosamente para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de caliça e telha. E, na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de fumo, mais tênue e ralo que o fumear de um escombro mal apagado, era todo o vestígio da sua vida magnífica.
               Então chasqueei risonhamente o meu Príncipe. Ai estava pois a cidade, augusta criação da Humanidade! Ei-la ai, belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da terra - uma camada de caliça, apenas mais cinzenta! No entanto, ainda momentos antes a deixamos prodigiosamente viva, cheia de um povo forte, com todos os seus poderosos órgãos funcionando, abarrotada de riqueza, resplandescente de sapiência, na triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de Graça.  E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a um colina, espreitávamos, escutávamos - e de toda a estridente e radiante Civilização da Cidade não percebíamos nem um rumor, nem um lampejo! E o 202, o soberbo 202, com os seus arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica, os seus trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de telha e cinza!  Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contempla de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço? Hein, Jacinto? ... Onde estão os teus Armazens servidos por três mil caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro universal? E as bibliotecas atulhadas com o saber dos séculos? Tudo se fundiu numa nódoa parda que suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada colina - a sublime edificação dos tempos não é mais que um silencioso monturo da espessura e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus! 
               E ante estes clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu príncipe, ele murmurou, pensativo: 
               - Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão! 
               Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma Ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus , espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto rijo e o nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem  de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutalmente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a da vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula, trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância.  Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas; - ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma  novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um mostrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o foucinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na cidade, nesta criação tão anti-natural, onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si o espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela cidade!
                 E ante estas encanecidas e veneráveis investidas, retumbadas pontualmente por todos os moralistas bucólicos, desde Hesíodo, através dos séculos - meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elas brotassem inesperadas e frescas, duma revelação superior, naqueles cimos de Montmartre: 
                 - Sim, com efeito, a cidade... É talvez uma ilusão perversa! 
                 Insisti logo, com abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil filosofar. E se ao menos essa ilusão da cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantém... Mas não! Só uma estreita e reluzente casta goza na cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só nela existem! Deste terraço, junto a esta rica Basílica consagrada ao Coração que amou o pobre e por ele sangrou, bem avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva sob este antigo opróbrio de quem nem religiões, nem filosofias, nem morais, nem a sua própria força brutal a poderão jamais libertar! Ai jaz, espalhada pela cidade, como esterco vil que fecunda a cidade. Os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão.  E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da cidade! Ei-la agora coberta de moradas em que eles não se abrigam; armazenada de estofos, com que eles não se agasalham; abarrotada de alimentos, com eles não se saciam! 
                 Para eles só a neve, quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das pontes de Paris... A neve cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam nos seus trapos; e a polícia, em torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha, com pelicas de três mil francos. Mas que, meu Jacinto! a tua civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinha. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da cidade. Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo - não poderia aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie-gras e túbaras  que são o orgulho da civilização. Há andrajos em trapeiras - para que as belas MADAMAS de Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, subam, em doce ondulação, a escadaria da Ópera. Há mãos regeladas que estendem, e beiços sumidos que agradecem o dom magnânimo de um sou - para que os Efrains tenham dez milhões no Banco de França, se aqueçam à chama rica da lenha aromática, e surtam de colares de safiras as suas concubinas,  netas dos Duques de Atenas. E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos - para que os Jacintos, em janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champanhe e avivados de um fio de éter! 
.......
                A sineta repenicou... E com um belo fumo claro o comboio desapareceu por detrás das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto. Ali ficávamos pois baldeados, perdidos na serra, sem grilo, sem procurador, sem caseiro, sem cavalos, sem malas! Eu conservava o paletó alvadio, donde surdia o Jornal do Comércio. Jacinto, uma bengala. Eram todos os nossos bens! 
                 O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos. Contei então à quele amigo o atarantado trasfego  em Medina sob a borrasca, o Grilo desgarrado, encalhado com as vinte e três malas, ou rolando talvez para Madrid sem nos deixar um lenço...
                  - Eu não tenho um lenço!... Tenho este Jornal do Comércio. É toda a minha roupa branca. 
                  - Grande arrelia, caramba! murmurava o Pimenta, impressionado. E agora? 
                  -Agora, exclamei, é trepar para a quinta etapa, à pé.. A não ser que se arranjasse ai uns burros. 
                 Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre tinha uma boa égua e um jumento... E o presente homem enfiou numa carreira para Giesta - enquanto o meu Príncipe e eu caíamos para cima dum banco, arquejantes e sucumbidos, como náufragos. O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras, não cessava de nos contemplar, de murmurar. 
                - É de arrelia. 
                O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de maio, abraçando sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma vilazinha clara. O espaço imenso repousava num imenso silêncio. Naqueles solidões de monte e penedia os paredões, revoando no telhado, pareciam aves consideráveis. E a massa rotunda e rubicunda  do Pimentinha dominava, atulhava a região. 
                 - Está tudo arranjado, meu Senhor! Veem ai os bichos! ... Só o que não calhou foi um selinzinho para a jumenta! 
                 Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta sacudindo na mão duas esporas desiguais e ferrugentas. E não tardaram a aparecer no córrego, para nos levarem a Tormes, uma égua ruça, um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada e amiga do Pimentinha. Eu cedi a égua ao Senhor de Tormes. E começamos a trilhar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos do século XIV! Logo depois de Atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras... E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita! 
                 Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço que eram como um musgo macio, onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao  carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustem as terras liadas pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras vestidas de lichen e de silvados floridos,  avançavam como proas de galeras enfeitadas; e dentre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, dentre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como corda de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados... Todo um cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda.  Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lages soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando; - ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepavam então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma , e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos moria pelas quebradas...
                  Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava: 
                  - Que beleza! 
                  E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava: 
                  - Que beleza! 
                 Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Por trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiam hospitaleiramente quando nós passávamos.  Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre serras!
               Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos àquela avenida de faias. Atirando uma vergasta ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os calcanhares, gritou: 
               - Aqui estamos, meus patrões! 
               E no fundo das faias, com efeito, aparecia o portão da quinta de Tormes, com seu brasão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacinto, na sua suada égua e eu atrás, no burro do Sancho, transpusemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra gasta, um homem médio, rapado como um padre, sem colete, sem jaleco, acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Príncipe. Era o Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu, toda a boca se lhe escancarou num riso hospitaleiro, a que faltavam dentes.  Mas apenas eu lhes revelei, naquele cavaleiro de bigodes louros que descia da égua esfregando os quadris, O Senhor de Tomes - o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante de uma avantesma. 
                - Ora essa!... Santíssimo nome de Deus! pois então...
                E entre o rosnar dos cães, num bracejar desolado, balbuciou uma história que por seu turno apavorava Jacinto, como se o negro muro do casarão pendesse para desabar. 
                O Melchior não esperava Sua Exa.!... Ninguém esperava Sua Exa.! ... ( Ele dizia sua incelência) ...  - O Sr. Silvério está em Castelo de Vide desde março, com a mãe, que apanhara uma cornada na virilha. E decerto houvera engano, cartas perdidas... Porque o Sr. Silvério só contava com Sua Exa. em setembro, para a vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho... O telhado, no sul, ainda continuava sem telhas; muitas vidraças esperavam ainda sem vidros; e, para ficar, Virgem Santa , nem uma cama arranjada!... Jacinto cruzou os braços numa cólera tumultuosa que o sufocava. Por fim, com um berro: 
                - Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em fevereiro, há quatro meses?...
                O desgraçado Melchior arregalava os olhos miúdos, que se embaciavam de  lágrimas. Os caixotes?! Nada chegara, nada aparecera!... E na sua perturbação mirava pelas arcadas do páteo, palava na algibeira as pantalonas. Os caixotes? Não, não tinha os caixotes! 
                - E agora Zé Fernandes? 
                Encolhi os ombros: 
                - Agora, meu filho, só vires comigo para Guiães... Mas são duas horas fartas a cavalo. E não temos cavalos! O melhor é ver o casarão, comer a boa galinha que o nosso amigo Melchior nos assa nos espeto, dormir numa enxerga, e amanhã cedo, antes do calor, trotar para cima, para a tia Vicência. 
                 Jacinto replicou, com uma decisão furiosa: 
                 - À manho troto, mas para baixo, para a estação!...
                 E depois, para Lisboa! 
                 E subi a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima, uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de negras vigas, toda ornada, por entre pilares de granito, com caixas de pau, onde floriam cravos. Colhi um cravo amarelo - e penetrei atrás de Jacinto nas salas nobres, que ele contemplava com um murmúrio de horror. Eram enormes, de uma sonoridade de casa capitular, com grossos muros enegrecidos pelo tempo e o abandono, e regeladas, desoladamente nuas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre paus. Nos tetos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões, manchas de céu. As janelas, sem vidraças, conservavam essas maciças portas, com fechos para as trancas, que, quando se cerram, espalham a treva.  Sob os nossos passos, aqui e além, uma tábua podre rangia e cedia. 
                 - Inabitável! rugia Jacinto surdamente. Um horror! Uma infâmia!... 
                Mas depois, noutras salas, o soalho alternava com remendos de tábuas novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhíssimos tetos de rico carvalho sombrio. As paredes repeliam pela alvura crua de cal fresca. E o sol mal atravessava as vidraças - embaciadas e gordurentas da massa e das mãos dos vidraceiros. 
                Penetramos enfim na última, a mais vasta, rasgada por seis janelas, mobiliada com um armário e com uma enxerga parda e curta estirada a um canto: e junto dela paramos, e sobre ela depusemos tristemente o que nos restava de vinte e três malas - o meu paleto alvadio, a bengala de Jacinto, e o Jornal do Comércio, que nos era comum. Através das janelas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava e circulava como num eirado, com um cheiro fresco de horta regada. Mas o que avistamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um cabeço e descendo pelo penador suave, à maneira de uma hoste em marcha, com pinheiros na frente, destacados, emplumados de negro; mais longe as serras de além rio, de uma fina e macia cor de violeta; depois a brancura do céu, todo liso, sem uma nuvem, de uma majestade divina. E lá embaixo, dos vales, subia desgarrada e melancólica, uma voz de pegureiro cantando. 
                Jacinto caminhou lentamente para o poial de uma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre, sem resistência ante aquele brusco desaparecimento de toda a civilização. Eu palpava a enxerga, dura e regelada como um granito de inverno. E pensando nos luxuosos colchões de penas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também a minha indignação: 
                - Mas o caixotes, caramba?... como se perdem assim trinta e tantos caixotes enormes? 
                Jacinto sacudiu amargamente os ombros: 
                - Encalhados,  por ai, algures, num barracão!...  Em Medina, talvez, nessa horrenda Medina. Indiferençadas Companhias, inércia do Silvério... Enfim a península, a barbárie! 
                Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por céu e monte: 
                - É uma beleza!
              O meu Príncipe, depois de um silêncio grave, murmurou, com a face encostada à mão: 
                - É uma lindeza! ... E que paz!... 
                Sob a janela vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Um eira, velha e mal alisada, dominava o vale, donde já subia tenuemente a névoa de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado se encravava em laranjal. E de uma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água. 
                - Estou com apetite desesperado daquela água! declarou Jacinto muito sério. 
                - Também eu... Desçamos ao quintal, hein? 
                Saímos ao terreiro, retalho da horta fechado por grossas rochas encabeladas de verdura, entestando com os socalcos da serra, onde lourejava o centeio. O meu Príncipe bebeu da água nevada e luzidia da fonte, regaladamente, com os beiços na bica; apeteceu a alface rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos de uma copada cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a que um bando de pombas branqueava o telhado, deslizamos até ao carreiro, cortado no costado do monte. E andando, pensativamente, o meu Príncipe pasmava para os milheirais, para os vetustos carvalhos plantados por Jacintos, para os casebres espalhados sobre os cabeços à orla negra dos pinheirais. 
                De novo penetramos na avenida de faias e transpusemos o portão senhorial entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacinto reconheceu "certa nobreza" na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçava para nela se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pagens. Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da capela, louvou o Silvério, "esse ralasso", por cuidar ao menos da morada do Bom Deus. 
               - E esta varanda também é agradável, murmurou ele mergulhando a face no aroma dos cravos. Precisa grandes poltronas, grandes divinas de verga...
               Dentro da "nossa sala", ambos nos sentamos nos poiais da janela, contemplando o doce sossego crepuscular que lentamente se estabelecia sobre vale e monte.  No alto tremeluzia um estrelinha, a Vênus diamantina, lânguida anunciadora da noite e dos seus contentamentos. Jacinto nunca considerara demoradamente aquela estrela, de amorosa refulgência, que perpetua no nosso céu católico a memória da Deusa incomparável; - nem assistira jamais, com a alma atenta, ao majestoso adormecer da Natureza. E este enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emudecendo, cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas; o segredado cochichar das águas e das relvas escuras - eram para ele como iniciações. Daquela janela, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não anda somente cheia do homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem enfim descaça. 
               Deste enlevo nos arrancou o Melchior com doce aviso do "jantarzinho de suas Incelências".  Era noutra sala, mais nua, mais abandonada; - e ai logo à porta o meu super-civilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata alumiavam grossos pratos de louça amarela, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro. Os corpos, de um vidro espeço, conservavam a sombra roxa do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diógenes.  Espetado na côdea de um imenso pão reluzia um imenso facalhão. E na cadeira senhorial reservada ao meu Príncipe, derradeira alfaiados velhos Jacintos, de hirto espaldar de couro, com a madeira roída de caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento poido. 
                Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incelências lhe perdoassem, porque faltara tempo para o caldinho apurar... Jacinto ocupou a sede ancestral - e, durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou - e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilhavam, surpreendidos.  Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais  considerada... E sorriu, com espanto: 
                - Está bom! 
                Estava precioso; tinha fígado e  tinha moela;  o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo. 
                - Também lá volto! exclamava Jacinto com uma convicção imensa. É que estou com uma fome... Santo Deus! 
                Há anos que não sinto esta fome. 
                Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim, surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arros com favas. Que desconsolo! 
                Jacinto, em Paris abominava favas!... Tentou, todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: 
               - Ótimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que favas! que delícia! 
                E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das  mulheres palreiras que embaixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
               - Deste arros com fava nem em Paris, Melchior amigo! 
               O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado: 
               - Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar! 
               O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parisis, o Senhor de Tomres, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. 
                Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com azeite da serra, digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: 
                 - "É divino!" Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema eu livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea , o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio: 
                 - Quo te carmina dicam, Rethica?  Quem dignamente te cantará, vinho amável d'estas serras? 
                 Eu, que não gosto que me avantagem em saber clássico, espanejei jogo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural: 
                - Anc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e Remo...  Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo! 
                 E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverencia. 
                 Ah! Jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Melchior - que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de verão. Filosofamos então com pachorra e facúndia.
                Na cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembras os astros - por causa dos candieiros de gaz dos globos de eletricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais duma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros, curiosamente,  com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
                - Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre a beira do telhado? 
                - Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cimado pinheiral? 
                - Não sei. 
                Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito  tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Siriús e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somo a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenos de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma lei, rolando para o  mesmo fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo corpo, onde circula, com um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa uma fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às mais  humildes, até às que parecem inertes e invitais.  Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte; - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremesse, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei: 
                - Acredita!... O sol tremeu. 
                E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes, contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do vaticano, na Vênus de Milo e talvez na Princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos e de inefável beleza; colossais e de uma carne mais dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e tem consciência da Vida - porque decerto cada mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo Existo.  Portanto todos nós Habitantes dos mundos, às janelas dos nossos casarões, além nos saturnos, ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um ato sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do Universo! - Hein Jacinto?...
                O meu amigo rosnou: 
                - Talvez... Estou a cair com sono. 
                - Também eu. "Remontamos muito, Exmo. Sr.!"como dizia um pestanudinha em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrelas!... Tu sempre vais amanhã? 
                - Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. Penso, logo fujo!" Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?... Nem só de arros com favas vive o homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com Cesimbra, o meu administrador. E também à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar docemente, com roupa lavada, para a translação... 
                 - É verdade, os osso... 
                 - Mas resta ainda o Grilo... Que animal! por onde andará esse perdido? 
                 - Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sebo já derretida no castiçal de lata era como um lume cigarro num descampado, meditamos na sorte do Grilo. O estimado negro ou fora despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos gritos - ou, regaladamente adormecido, rolara com o Anatole no comboio para Madrid. Mas ambos os casos eao meu Príncipe como irremediavelmente destruidores do seu conforto... 
                 - Não, escuta Jacinto... Se o Grilo encalhou em Medina, dormiu na Fonda, catou os percevejos, e está madrugada coreu para Tormes. Quando amanhã desceres à estação, às quatro horas, encontrarás o teu precioso homem, com as tuas preciosas malas, metido nesse comboio que te leva ao Porto e  à Capital... 
                 Jacinto sacudiu os braços com quem se debate nas malhas duma rede: 
                 - E se seguiu para Madrid? 
                 Então por esta semana, cá aparece em Tormes, onde encontra ordem para regressas a Lisboa e reentrar no teu séquito... Resta o interessante caso das minhas bagagens. Se amanhã encontrares na estação o Grilo, separa a minha mala negra, e o saco de lona, e a chapeleira. O Grilo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para Guiães.  Se o Grilo aportar Tormes, esfogueteado de Madrid, com toda essa malaria, deixa as minhas coisas aqui, ao Melchior... Eu amanhã falo ao Melchior. 
                 Jacinto sacudiu furiosamente o colarinho: 
                 - Mas como posso eu partir para Lisboa, amanhã, com esta camisa de dois dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço... nem ao menos uma escova de dentes! 
                 Fértil em ideia, estendi as mãos, num belo gesto tutelar: 
                 - Tudo se arranja, meu Jacinto, tudo se arranja! Eu largando daqui cedo, pelas seis horas, chego a Guiães às dez, ainda sem calor. E, mesmo antes do almoço e da cavaqueira com a tia Vicência, imediatamente te mando, por um moço, um saco de roupas brancas. As minhas camisas e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem direito a elegâncias e a roupas bem cortadas. O moço num bom trote, entra aqui as duas horas; tens tempo de mudares antes de desceres para a estação...  Posso meter na mala uma escova de dentes. 
                Oh Zé Fernandes! Então mete também uma esponja e um fraco de água de colônia!
                - Água de alfazema, excelente, feita pela tia Vicência... 
                O meu Príncipe suspirou, impressionado com a sua miséria esquálida, e esta dádiva de roupas: 
                - Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções e de astros...
                Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que "estam preparadinhas as camas de sua Incelências." E, seguindo o bom caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós, o meu Príncipe e eu, ainda ha pouco irmanados com os astros? Em duas saletas, que uma abertura em arco, lôbrego arco de pedra, separava - duas enxergas sobre o soalho. Junto à cabeceira da mais larga, que pertencia ao Senhor de Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima duma tripeça. Para mim, serrano daquelas serras, nem alguidar nem alqueire. Lentamente, com o pé, o meu super civilizado amigo palpou a enxerga. E decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre ela, a correr desoladamente os dedos pelas face desmaiada. 
                 - E o pior não é ainda a enxerga, murmurou enfim com um suspiro. É que não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de camisa engomada. 
                Por inspiração minha recorremos ao Melchior. De novo esse benemérito providenciou, trazendo a Jacinto, para ele desafogar os pés, uns tamancos - e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Príncipe lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Vasco da Gama quando dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas fortes, oh Jacinto!... E é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso. 
                 - Tens tu, volveu o meu amigo secamente, alguma coisa que eu a leia? Não posso adormecer sem um livro. 
                 Eu? Um livro? Possuía apenas o velho número do Jornal do Comercio, que escapara à dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio, partilhei com Jacinto fraternalmente. Ele tomou a sua metade, que era a dos anúncios... E quem não viu então Jacinto, senhor de Tormes, acaçapado à borda da enxerga, rente da vela  de sebo que derretia no alqueire, com os pés encafuados nos socos, perdido dentro das ásperas pregas  e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo num pedaço velho de gazeta, pensativamente, as partidas dos paquetes - não pode saber o que é uma intensa e verídica imagem do Desalento. 
                Recolhido à minha alcova espartana, desabotoava o colete, num delicioso cansaço, quando o meu Príncipe ainda me reclamou: 
                - Zé Fernandes...
                - Dize. 
                - Manda também no saco um abotoador de botas. 
               Estirado comodamente na rija enxerga, murmurei, como sempre murmuro ao penetrar no sono, que é um primo da Morte. 
               - Deus seja louvado! 
               Depois tomei a metade do Jornal do Comércio que me pertencia. 
               - Zé Fernandes... 
               - Que é?
               - Também podias meter no saco, pós de dentes... E uma lima de unhas... E um romance! 
               - Já a meia gazeta me escapava das mão dormentes. Mas na sua alcova, depois de soprar a vela, Jacinto murmurou entre um bocejo: 
               - Zé Fernandes... 
               - Hein? 
               - Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençóis ao menos são frescos, cheiram bem, a sadio!


BIOGRAFIA DE EÇA DE QUEIROZ


José Maria Eça de Queiroz, romancista português, nasceu em Povoa de Varzim em 25 de novembro de 1843 e morreu em Neuilly a 17 de Agosto de 1900, sendo cônsul de Portugal em Paris. Filho de um magistrado, Eça foi educado também para a magistratura, fazendo os primeiros estudos no Porto e formando-se em direito na Universidade de Coimbra. Em 1866 veio para Lisboa, escrevendo na Gazeta de Portugal e colaborando depois com Ramalho Ortigão no Mistério da Estrada de Cintra, romance em cartas para o Diário de Notícias, e nas Farpas, mensário de de crítica da política, das letras e dos costumes. Tendo feito concurso para cônsul, foi em 1872 nomeadopara Havana, passando mais tarde a Newcastle, Bristol e Paris. Em 1889-90 dirigiu a Revista de Portugal.  foi mestre do realismo nas letras portuguesas, e a sua obra, de extraordinária originalidade e valor artístico, cintilante de humorismo e de ironia, compreende: O Crime do Padre Amaro, 1876; A Relíquia, 1887; Os Maias, 1888; A Ilustre casa de Ramires, 1897; A Cidade e as Serras, 1901; O Mandarin; Correspondência de Fradique Mendes; Contos; Prosas Bárbaras; Ecos de Paris; Cartas de Inglaterra; Uma Campanha Alegre, etc.